O Brasil é o único país com mais de 100 milhões de habitantes que busca oferecer acesso universal à saúde: mas como resolver o subfinanciamento do SUS?
artigo de Alexandre Padilha na Carta Maior
Andressa Urach |
“Hospital do SUS salva modelo com complicações em procedimentos estéticos realizados em clínica privada”
Andressa Urach passeia pela praia após alta |
Às vésperas do Natal, depois de dias
de internação, felizmente a modelo e apresentadora Andressa Urach recebeu alta
hospitalar, com vida e pronta para se reabilitar. Durante todos esses dias, a
imprensa e as redes foram ricas em comentar sobre a vida da modelo, sobre
boatos em relação a sua saúde, sobre técnicas estéticas, sobre a ditadura da
beleza e clínicas e mais clínicas. Raras matérias traziam uma informação que
surpreende a todos: depois de um périplo por clínicas particulares sem solução
definitiva, foi em um hospital 100% SUS, do Grupo Hospitalar Conceição (um dos
poucos próprios do Ministério da Saúde) que a modelo teve a sua vida salva e a
saúde reabilitada. Foram médicos e profissionais de saúde que enfrentam todas
as carências que estão presentes nos hospitais públicos, que cuidaram da
complicação decorrente do procedimento estético. Mais uma vez, neste ato,
garantiram a modelo o direito de todos os 200 milhões de brasileiros: o acesso
a um sistema de saúde que busca ser universal.
Nem no meu maior devaneio SUSista esperava uma manchete do tipo: “Hospital do SUS salva modelo com complicações em procedimentos estéticos realizados em clínica privada”. Ou ”Ao contrário de Miami, modelo não precisou pagar antecipadamente por vida salva em Hospital do SUS”. Mas é preciso falarmos alto para que esta, uma das contradições da relação entre dois sistemas de saúde, público e privado, não passe desapercebida. Pelo tamanho atual dos dois sistemas no Brasil, é fundamental que as contradições sejam cada vez mais enfrentadas, sob risco de inviabilizarmos o projeto de um sistema público universal com qualidade e reforçarmos a iniquidade também no sistema privado.
Nem no meu maior devaneio SUSista esperava uma manchete do tipo: “Hospital do SUS salva modelo com complicações em procedimentos estéticos realizados em clínica privada”. Ou ”Ao contrário de Miami, modelo não precisou pagar antecipadamente por vida salva em Hospital do SUS”. Mas é preciso falarmos alto para que esta, uma das contradições da relação entre dois sistemas de saúde, público e privado, não passe desapercebida. Pelo tamanho atual dos dois sistemas no Brasil, é fundamental que as contradições sejam cada vez mais enfrentadas, sob risco de inviabilizarmos o projeto de um sistema público universal com qualidade e reforçarmos a iniquidade também no sistema privado.
”Ao contrário de Miami, modelo não precisou pagar antecipadamente por vida salva em Hospital do SUS”O Brasil é o único país do mundo, com mais de 100 milhões de habitantes, que busca oferecer a sua população o acesso universal a saúde. Nem mesmo as novas Constituições da América Latina, apelidadas de bolivarianas, foram tão ousadas:” Saúde é DIREITO de todos e DEVER do Estado”. Ao mesmo tempo, temos cerca de 50 milhões de usuários de planos de saúde médico-hospitalares (eram 30 milhões em 2003) e 70 milhões, incluindo planos odontológicos. Os números de ambos os sistemas impressionam ministros da Saúde e investidores de todo o mundo. O caso similar a modelo, pacientes do sistema privado recorrerem ao SUS, por falta de cobertura ou por situação de emergência é muito mais comum do que se imagina. Desde 2011, quando assumi o Ministério da Saúde, implantamos um conjunto de mudanças de gestão para identificar quando isso ocorre. Com elas, busca-se garantir o ressarcimento do plano de saúde ao SUS, porque é dele que se deve cobrar, não do paciente. Desde então, as operadoras são obrigadas a emitir um número de cartão SUS para todo usuário de plano, permitindo ao Ministério este rastreamento. Você que me lê e é usuário de plano de saúde tem número de cartão SUS e talvez não saiba. De lá para cá, foram recordes sucessivos de recuperação de recursos para o SUS: em 3 anos, mais do que em toda história da Agência Nacional de Saúde (ANS), criada em 2000. Mas muito precisa-se avançar nessa cobrança, e o governo Dilma prosseguiu em novas medidas em relação a isso. O motivo mais comum de internação no SUS por detentores de planos de saúde, acreditem: parto. Recentemente, correu as redes a notícia de turista canadense, que teve parto de urgência no Havaí e, quando voltou para casa, recebeu conta de US$2,5 milhões para pagar.
Poderia citar outros exemplos em que somos usuários do SUS sem nem reconhecermos. Desde 2001, o Brasil é recordista mundial de transplantes em hospitais públicos. O SAMU salva vidas sem perguntar o plano ou exigir cheque. A vigilância sanitária estabelece regras e fiscaliza a comida dos restaurantes, inclusive os chiques, de preços estratosféricos. As mesmas analisam risco a saúde de equipamentos, medicamentos, bebidas vendidas em massa, cosméticos e produtos de estética. O próprio uso do HIDROGEL já estava condenado pela Anvisa, evitando novos casos como o de Andressa Urach.
Estas
contradições da convivência de dois sistemas públicos e privado impactam nos
maiores desafios atuais de sobrevivência do projeto SUS: o seu subfinanciamento
e a iniquidade no acesso aos serviços. E criam um ambiente, no mercado de
trabalho e no complexo industrial da saúde, que influencia fortemente outro
fator decisivo para uma saúde pública humanizada: a formação e a postura dos
profissionais de saúde.
Há
um consenso suprapartidário no Brasil: a saúde pública é subfinanciada. A
divergência é como resolver este fato. Desde o final da CPMF, que retirou R$40
bilhões anuais do orçamento do Ministério da Saude, o Brasil investe na saúde
pública em média 3 vezes per capta menos do que parceiros sul americanos como
Chile, Argentina e Uruguai; cerca de 7 a 8 vezes do que sistemas nacionais
europeus recentes como Portugal e Espanha, cerca de 11 vezes menos do que o
tradicional Sistema Nacional Inglês. Ao mesmo tempo, segundo dados recentes
publicados pelo IPEA, a isenção fiscal referente aos planos de saúde no Brasil
chegou a cerca de R$ 18 bilhões. Ou seja, o mesmo Estado que não garante
recursos suficientes para prover um sistema público para todos, co-financia a
alternativa para uma parcela da população, que se vê obrigada a pagar valores
expressivos para ter acesso a saúde. Além disso, o mesmo Estado suporta o
atendimento de vários procedimentos que de alguma forma não são cobertos pelos
planos. A incorporação tecnológica, o envelhecimento da população e o impacto
dos acidentes automobilísticos e da violência urbana nos custos dos serviços de
emergência e reabilitação, transformam esta equação, já precária, em insustentável.
Não a toa, a melhoria da saúde é a primeira demanda da população e ter um plano
de saúde, o sonho da nova classe trabalhadora. No último período, dois avanços
importantes do governo Dilma foram conquistados: a regra que estabelece quanto
União, estados e municípios são obrigados a investir em saúde e a vinculação de
um percentual dos recursos do pré-sal. Mas precisamos avançar sempre.
As opções para o financiamento da saúde são uma das expressões da desigualdade não tão revelada no nosso país. É mais do que hora de todos nós, que colocamos a redução das desigualdades como centro de um projeto político, enfrentá-las. Se não o fizermos, perderemos a capacidade de interlocução com segmentos expressivos da classe trabalhadora, que sofre com a baixa qualidade e os custos dos sistemas públicos e privados. Temos que ir para ofensiva no diálogo com a sociedade e explicitar que ampliar o financiamento a saúde passa, necessariamente, por inverter o sistema tributário injusto com o qual convivemos. Não é razoável, em um país como o Brasil, que alguém, ao receber R$ 60 mil em 12 meses de trabalho, paga 27% de Imposto de Renda, enquanto alguém que receber R$ 2 milhões de herança, praticamente não será taxado. Em países como EUA (30-40%) França (45%), Alemanha, Japão (50%) as alíquotas para heranças seriam outras. Estudos de 1999 mostram que imposto sobre fortunas no Brasil, entre 0,8% a 1,2%, em fortunas acima de R$ 1 milhão, renderiam uma arrecadação de cerca de 1,7% do PIB, mais do que era obtido pela CPMF.
As opções para o financiamento da saúde são uma das expressões da desigualdade não tão revelada no nosso país. É mais do que hora de todos nós, que colocamos a redução das desigualdades como centro de um projeto político, enfrentá-las. Se não o fizermos, perderemos a capacidade de interlocução com segmentos expressivos da classe trabalhadora, que sofre com a baixa qualidade e os custos dos sistemas públicos e privados. Temos que ir para ofensiva no diálogo com a sociedade e explicitar que ampliar o financiamento a saúde passa, necessariamente, por inverter o sistema tributário injusto com o qual convivemos. Não é razoável, em um país como o Brasil, que alguém, ao receber R$ 60 mil em 12 meses de trabalho, paga 27% de Imposto de Renda, enquanto alguém que receber R$ 2 milhões de herança, praticamente não será taxado. Em países como EUA (30-40%) França (45%), Alemanha, Japão (50%) as alíquotas para heranças seriam outras. Estudos de 1999 mostram que imposto sobre fortunas no Brasil, entre 0,8% a 1,2%, em fortunas acima de R$ 1 milhão, renderiam uma arrecadação de cerca de 1,7% do PIB, mais do que era obtido pela CPMF.
A
formação e a conduta profissional é o outro território invadido por estas
relações dos dois sistemas público e privado. A batalha do Mais Médicos, as
denúncias recentes de abuso sexual e preconceito por alunos de medicina nas
faculdades e a atitude absurda de algumas lideranças condenarem a campanha
antiracismo organizada pelo Ministério da Saúde só explicitaram o arcabouço de
valores que influencia a formação dos nossos futuros profissionais, de ambos os
sistemas. No cerne, há duas correias de tensão, que se alimentam mutuamente.
Por um lado, um ideário liberal de exercício da profissão, que alimenta, desde
os primeiros dias de graduação, uma não aposta em um sistema público de
qualidade e o desrespeito em relação aos seus usuários: pobres, mulheres,
negros, homossexuais e “gente não diferenciada”. Por outro, um mercado dinâmico
e lucrativo de tecnologia, órteses, próteses, equipamentos, fármacos, serviços,
publicações, congressos que financia uma visão cada vez ultraespecializante da
formação e da atuação em saúde. Não a toa, a investigação iniciada pelo
Ministério da Saúde, em Março de 2013 que teve luz recente graças a matéria de
TV, e o Mais Médicos incendiaram o debate, questionaram paradigmas e condutas.
Não há nenhum profissional de saúde no Brasil, nem aquele que se especializou
em realizar procedimentos estéticos em clínicas privadas, que não tenha
dependido do SUS para se formar. Nos meus tempos de estudante de medicina
cunhamos a frase: “chega de aprender nos pobres para só querer cuidar dos
ricos”
Esta
realidade desafiadora nos abre uma grande oportunidade. O entendimento de que
um sistema público dessa dimensão, em um país tão desigual e diverso como o
nosso, gera plataforma continental para um amplo complexo de indústria e
serviços no campo da saúde. O Brasil será mais rico e menos desigual se
pudermos articular as duas perspectivas. Não será possível sustentar um sistema
público de saúde sem crescimento econômico e para tal é necessário colocarmos
os 2 pés no universo da inovação tecnológica. Ao mesmo tempo, o complexo de
indústrias e de serviços da saúde não sobrevive no Brasil se desprezar o
mercado interno impulsionado pelo acesso a um sistema público, cada vez mais
tecnológico. Usar o poder de compra do estado para fortalecer um setor
econômico que gere empregos e inovação tecnológica no Brasil teve, na Saúde, a
sua experiência recente mais exitosa. Ela foi calcada de um lado na ousadia, ao
estabelecer o interesse público e nacional como o rumo a ser seguido, e
previsibilidade, regras que estimulassem o setor privado a fazer este jogo de
interesse para o Brasil. Beber dessa experiência é fundamental para
fortalecermos a Saúde como um impulso, e não um peso a carregar, na agenda de
desenvolvimento do Brasil.
Andressa Urach durante internação |
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Alexandre Padilha |
*Alexandre Padilha, médico, 43 anos,
ex-Ministro da Coordenação Política de Lula e Saúde de Dilma e candidato a
governador de SP em 2014
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