MINHA FALA NO ATO NA ABI
PELA ANULAÇÃO DO JULGAMENTO DO MENSALÃO
Publicado em 30/01/2013 / por Hildegard Angel
Venho, como cidadã, como
jornalista, que há mais de 40 anos milita na imprensa de meu país, e como
vítima direta do Estado Brasileiro em seu último período de exceção, quando me
roubou três familiares, manifestar publicamente minha indignação e sobretudo minha
decepção, meu constrangimento, meu desconforto, minha tristeza, perante o
lamentável espetáculo que nosso Supremo Tribunal Federal ofereceu ao país e ao
mundo, durante o julgamento da Ação Penal 470, apelidada de Mensalão, que eu
pessoalmente chamo de Mentirão.
Mentirão porque é mentirosa
desde sua origem, já que ficou provada ser fantasiosa a acusação do delator
Roberto Jefferson de que havia um pagamento mensal de 30 dinheiros, isto é, 30
mil reais, aos parlamentares, para votarem os projetos do
governo.
Mentira confirmada por cálculos
matemáticos, que demonstraram não haver correlação de datas entre os saques do
dinheiro no caixa do Banco Rural com as votações em plenário das reformas da
Previdência e Tributária, que aliás tiveram votação maciça dos partidos da
oposição. Mentirão, sim!
Isso me envergonhou, me
entristeceu profundamente, fazendo-me baixar o olhar a cada vez que via, no
monitor de minha TV, aquele espetáculo de capas parecendo medievais que se
moviam, não com a pretendida altivez, mas gerando, em mim, em vez de segurança,
temor, consternação, inspirando poder sem limite e até certa arrogância de
alguns.
Eu, que já presenciara em
tribunais de exceção, meu irmão, mesmo morto, ser julgado como se vivo
estivesse, fiquei apavorada e decepcionada com meu país. Com este momento, que
sei democrático, mas que esperava fosse mais.
Esperava que nossa corte mais
alta, composta por esses doutos homens e mulheres de capa, detentores do
Supremo poder de julgar, fosse imune à sedução e aos fascínios que a fama
midiática inspira.
Que ela fosse à prova de
holofotes, aplausos, projeção, mimos e bajulações da super-exposição no
noticiário e das capas de revistas de circulação nacional. E que fosse
impermeável às pressões externas.
Daí que, interpretação minha,
vimos aquele show de deduções, de indícios, de ausências de provas, de
contorcionismos jurídicos, jurisprudências pós-modernas, criatividades inéditas
nunca dantes aplicadas serem retiradas de sob as capas e utilizadas para as
condenações.
Para isso, bastando mudar a
preposição. Se ato DE ofício virasse ato DO ofício é porque havia culpa. E o
ônus da prova passou a caber a quem era acusado e não a quem acusava. A ponto
de juristas e jornalistas de importância inquestionável classificarem o
julgamento como de “exceção”.
Não digo eu, porque sou
completamente desimportante, sou apenas uma brasileira cheia de cicatrizes não
curadas e permanentemente expostas.
Uma brasileira assustada,
acuada, mas disposta a vir aqui, não por mim, mas por todos os meus
compatriotas, e abrir meu coração.
A grande maioria dos que
conheço não pensa como eu. Os que leem minhas colunas sociais não pensam como
eu. Os que eu frequento as festas também não pensam, assim como os que
frequentam as minhas festas. Mas estes estão bem protegidos.
Importa-me os que não conheço e
não me conhecem, o grande Brasil, o que está completamente fragilizado e
exposto à manipulação de uma mídia voraz, impiedosa e que só vê seus próprios
interesses. Grandes e poderosos. E que para isso não mede limites.
Esta mídia que manipula,
oprime, seduz, conduz, coopta, esta não me encanta. E é ela que manda.
Quando assisti ao julgamento da
Ação Penal 470, eu, com meu passado de atriz profissional, voltei à dramaturgia
e me lembrei de obras-primas, como a peça As feiticeiras de Salém, escrita por
Arthur Miller. É uma alegoria ao Macartismo da caça às bruxas, encetada pela
direita norte-americana contra o pensamento de esquerda.
A peça se passa no século 17,
em Massachusets, e o ponto crucial é a cena do julgamento de uma suposta
feiticeira, Tituba, vivida em montagem brasileira, no palco do Teatro
Copacabana, magistralmente, por Cléa Simões. Da cena participavam Eva Wilma,
Rodolpho Mayer, Oswaldo Loureiro, Milton Gonçalves. Era uma grande pantomima,
um julgamento fictício, em que tudo que Tituba dizia era interpretado ao
contrário, para condená-la, mesmo sem provas.
Como me lembro da peça Joana
D’Arc, de Paul Claudel, no julgamento farsesco da santa católica, que foi para
a fogueira em 1431, sem provas e apesar de todo o tempo negar, no processo
conduzido pelo bispo de Beauvais, Pierre Cauchon, que saiu do anonimato para ao
anonimato retornar, deixando na História as digitais do protótipo do homem
indigno. E a História costuma se repetir.
No julgamento de meu irmão,
Stuart Angel Jones, à revelia, já morto, no Tribunal Militar, houve um momento
em que ele foi descrito como de cor parda e medindo um metro e sessenta e
poucos. Minha mãe, Zuzu Angel, vestida de luto, com um anjo pendurado no
pescoço, aflita, passou um torpedo para o então jovem advogado de defesa, Nilo
Batista, assistente do professor Heleno Fragoso, que ali ele representava. O
bilhete dizia: “Meu filho era louro, olhos verdes, e tinha mais de um metro e
80 de altura”. Nilo o leu em voz alta, dizendo antes disso: “Vejam, senhores
juízes, esta mãe aflita quebra a incomunicabilidade deste júri e me envia estas
palavras”.
Eu era muito jovem e mais
crédula e romântica do que ainda sou, mas juro que acredito ter visto o juiz
militar da Marinha se comover. Não havia provas. Meu irmão foi absolvido. Era
uma ditadura sanguinária. Surpreende que, hoje, conquistada a tão ansiada
democracia, haja condenações por indícios dos indícios dos indícios ou coisa
parecida…
Muito obrigada.
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