Alan Santiago
Há 130 anos, nascia um dos maiores escritores do século XX. De família judia, escrevendo em alemão, Franz Kafka analisou os problemas impostos à condição humana pela racionalidade de nossa sociedadeCerta vez, Max Brod perguntou ao amigo Franz Kafka: “Existiria então esperança fora desse mundo de aparências que conhecemos?”. Um dos maiores escritores do século XX, nascido em Praga no dia 3 de julho de 1883, há exatos 130 anos, riu e respondeu em seguida: “Há esperança suficiente, esperança infinita – mas não para nós”.
Reproduzido em ensaio do filósofo
alemão Walter Benjamin, o diálogo é lapidar pela desesperança a que, lançado o
próprio autor, Kafka acabou atribuindo a seus personagens.
As figuras que aparecem nos romances
– nos inacabados O Castelo (1926) e O Processo (1925) – e contos – em, por
exemplo, “O Veredito” (1912) e “Na Colônia Penal” (1919) – estão sempre diante
de uma sociedade monstruosa, fragmentada e por isso mesmo inconciliável.
Cresce numa família de classe média,
numa República Tcheca ainda território do Império Austro-húngaro. De origem
pobre, o pai, Hermann Kafka, fez de tudo para abandonar o passado de penúria.
Conseguiu. Após um tempo como representante comercial, se torna dono de uma
próspera loja de miudezas e roupas.
A mãe, Julie Löwy, que dedicava
inúmeras horas do dia aos negócios da família, deu à luz seis filhos – do qual
Kafka foi o mais velho. Com a morte de dois irmãos, ele tornava-se o único
homem entre os filhos.
Os Kafka acabaram duplamente afetados
pelo que eram: desacreditados por falar alemão em meio à multidão tcheca;
julgados dentro da comunidade por sua origem judia.
Essa encruzilhada de identidades e
linguagens levou os filósofos Gilles Deleuze e Felix Guattari, em Kafka – por
uma literatura menor (1975), a afirmar que os judeus de Praga, ao mesmo tempo
uma parte da minoria e excluídos dela, eram tratados como “ciganos que roubam
uma criança alemã do berço”.
A desterritorialização de Kafka com o
mundo iria também se aprofundar em relação à própria família. Principalmente,
porque vão se agravando ao longo dos anos os conflitos com o pai.
Um deles acontece quando, em 1911,
engajado numa fábrica de amianto com o cunhado, Kafka vê seu tempo livre, que
dedicava à literatura, corroído pelo acúmulo de expedientes entre a fábrica e a
companhia de seguros, onde também trabalhava.
Conflitos
Em 1918, o pai
tripudia da vontade do filho, já aos 36 anos, de casar com Julie, que conheceu
pouco antes. Kafka já havia passado por outras tentativas infrutíferas de
casamento; duas vezes inclusive com a secretária Felice Bauer.
“Eu simplesmente não consigo entendê-lo, você é um homem feito, você vive na cidade e ainda assim não consegue fazer melhor do que casar com a primeira garota que a aparece”, desdenhou o pai.
No ano seguinte, Kafka dedica a
Hermann Um Médico Rural, coleção de contos que inclui a história do doutor
tentando sem sucesso visitar uma criança doente numa noite fria. Quando veio
lhe mostrar o livro, o pai afirmou: “Coloque em cima do criado-mudo”.
As palavras derrotaram o escritor.
Naquele mesmo ano, escreveria Carta ao Pai (1919), uma missiva totalmente
amargurada que tentava acertar as contas com o patriarca, mas que nunca chegou
a enviar ao ser dissuadido pela mãe e a irmã.
Para Benjamin, há “muitos indícios de
que o mundo dos funcionários e o mundo dos pais são idênticos para Kafka. Essa
semelhança não os honra. Ela é feita de estupidez, degradação e imundície”. Em
muitos escritos, Kafka qualificava o pai de tirano e autoritário.
Em O Veredito, a figura paterna por
sua força acaba condenando o personagem à morte. Em A Metamorfose (1915), onde
o personagem principal acorda transformado num inseto, o conflito se estabelece
também com o pai, que tenta a todo custo tirar a vida do rebento, agora um
bicho. A propósito, é dessa novela um dos inícios mais célebres da literatura
universal: “Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por
si na cama transformado num gigantesco inseto”.
Essa estrutura lógica vai se repetir,
por exemplo, em O Processo, onde o bancário Joseph K. tenta entender o motivo
de uma pendenga judicial que o levará à pena capital, ou no conto “Na Colônia
Penal”, em que o condenado tem a sentença grafada no corpo sem saber porque
está sofrendo aquelas torturas.
A figura paterna massacrante e
terrível estaria sempre à espreita na obra de Kafka, seja na reprodução da
relação mesma entre pai e filho, seja no símbolo da máquina estatal irracional
e opressora.
“Kafka apresenta possibilidades de
comportamento humano e estruturas possíveis de vida num mundo que parece
misterioso e absurdo porque a estrutura desse mundo é, por sua vez, hostil
realização de uma vida estruturada”, destaca Otto Maria Carpeaux no quarto
volume de seu monumental História da Literatura Ocidental.
Em outras palavras, o homem kafkiano
é um atestado dos problemas impostos pela modernidade que tenta racionalizar o
mundo, reduzi-lo e enquadrá-lo naquilo que pode compreender ou mensurar. A
modernidade desencantou o mundo, como diz o sociólogo Max Weber, e a literatura
de Kafka está, de alguma forma, se debatendo diante disso.
_fonte: Jornal O Povo – Vida & Arte
LITERATURA 03/07/2013
LITERATURA 03/07/2013
Alan
Santiago - alan@opovo.com.br
http://www.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2013/07/03/noticiasjornalvidaearte,3084997/os-castelos-de-kafka.shtml
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